O drama de um setor econômico que agoniza bem antes da pandemia

O momento é extremamente preocupante no mundo todo. Milhões de vidas estão em risco, a economia vai sofrer uma retração inimaginável e sabemos que os mais impactados do ponto de vista da saúde física, mental e financeira são os mais pobres. Em países com alto índice de desigualdade social como o Brasil a crise se torna um pesadelo, já que o atual piloto do avião se mostra não só incompetente, mas absolutamente irresponsável e com posições que podem ampliar o número de óbitos no país.

Em meio a tantas questões, surge também a reflexão sobre um setor que já está na UTI há alguns anos: o audiovisual. Em especial, a produção independente. Há estudos importantes que falam sobre empregos e impostos que filmes e séries geraram nos últimos anos. Posso falar de um projeto que conheço de perto. Com 2,1 milhões investidos, neste projeto foram contratadas mais de 350 empresas e pessoas físicas, na forma de prestação de serviços, compra ou locação de equipamentos ou espaços físicos num período de 7 meses.

Considerando uma média de 10% em impostos em todos os âmbitos (em especial no federal) foram gerados cerca de R$ 210 mil em recursos que saíram de uma conta específica do setor e foram para o cofre geral do Estado brasileiro para financiar saúde, educação, ciência & tecnologia, saneamento básico, entre outros.

Aqui vale a explicar que, neste projeto que utilizo como exemplo, a totalidade dos recursos utilizados vieram do Fundo Setorial do Audiovisual, cuja fonte primária é uma Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE), apelidada de Condecine, que se alimenta majoritariamente de uma taxa que as operadoras de telefonia pagam por celular ativo no Brasil. Se essa taxa não fosse cobrada, contabilizaria mais lucros para as bilionárias Teles. Com a cobrança, converte-se em arte, entretenimento, informação, cultura, empregos e recursos para setores essenciais da vida dos brasileiros.

Os projetos variam muito entre si, mas enxergando esses dados como médias ou projeções, o audiovisual pode ter gerado, só no ano de 2018, R$ 123 milhões[1] em impostos e 875 mil contratações[2]. Considerando que a máscara N 95 custa 12 reais poderíamos comprar mais de 10 milhões de máscaras. Mesmo considerando a inflação que ocorreu com os respiradores em função da demanda, daria para suprir uma cidade média brasileira com a compra de mais de 500 respiradores (antes da alta poderiam ser 1.500).

Pois bem, em 2019, todas essas projeções caíram vertiginosamente. Do potencial de geração de impostos de R$ 123 milhões passamos a uma projeção dez vezes menor e com tendência à zero em 2020. E a causa do início dessa morte lenta do setor passa muito longe de um vírus que abala o mundo. Começava há quase dois anos, quando o Tribunal de Contas da União (TCU) questionou as prestações de contas da Agência Nacional do Cinema (Ancine). A partir daí, em maio de 2018 foi iniciada uma das piores gestões políticas de crise do audiovisual brasileiro, que passou pela paralisia quase completa da Agência em maio de 2019[3] até o afastamento do presidente, Christian de Castro, pelo Ministério Público Federal, em novembro do mesmo ano, acusado de falsidade ideológica e estelionato, entre outros. Considerando os dados de 2018, estima-se que há mais de R$ 800 milhões em projetos parados na Agência.

Após a eleição de Bolsonaro, o setor enfrentou novas crises. Primeiro, a extinção do Ministério da Cultura. Depois, sob a gestão de Osmar Terra, o setor experimentou a nomeação do Goebbels brasileiro, Roberto Alvim, caído por forças superiores ao discurso fascista que forjou. Em seu lugar, Regina Duarte, que, até hoje, não nomeou um subsecretário do audiovisual e sinaliza que pode extinguir a pasta.

Ainda neste período intenso entre o primeiro dia de mandato do Bolsonaro e o dia 20 de janeiro de 2020, a Ancine permanecia com apenas um diretor e as atividades praticamente paralisadas. Não contente, Bolsonaro vetou dois importantes mecanismos de incentivo muito utilizados pelo setor[4] e encaminhou ao Congresso o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) de extinção dos Fundos Públicos[5], inclusive o Fundo Setorial do Audiovisual. Estes últimos seguem em batalha inaudita no Congresso Nacional, deixados em segundo plano em função da pandemia. Por fim, o tiro de misericórdia, a decisão da desembargadora Ângela Catão de garantir às operadoras de telefonia a suspensão do pagamento da Condecine[6].

O resultado parcial (porque só considera os recursos do FSA) é o gráfico abaixo, com projeção de chegarmos em 2020 à triste e conhecida linha reta dos monitores de sinais vitais, com sirene constante, e desligamento dos aparelhos.

WhatsApp Image 2020-04-08 at 14.53.12

Tabela 1 – Investimento do Fundo Setorial do Audiovisual entre 2009 e 2019[7]

 

 

As perguntas que fazemos são: o que faz mais sentido neste momento em que todos buscamos soluções para apoiar trabalhadores e trabalhadoras, microempresas, comércio e a economia como um todo, além da óbvia prioridade das medidas de isolamento e investimento no Sistema Único de Saúde? É possível, neste momento, investir os mais de 1 bilhão de reais em caixa, para pelo menos fomentar as atividades que não requerem presença física, considerando os mais de 400 projetos parados na Agência Nacional do Cinema e a possibilidade de lançamento de novos editais; ou é melhor deixar morrer um setor da arte que, citando Nietzsche, “existe para que a realidade não nos destrua”?

 

Carol Ribeiro é jornalista e produtora audiovisual.

[1] Estimativa feita com base no relatório Valores totais de Investimento FSA, Recursos Incentivados, Editais, Programas e Prêmios – Em Reais (R$) – 2003 a 2018, da Agência Nacional do Cinema, disponível em: https://oca.ancine.gov.br/

[2] Tomamos por base o número de 350 empresas contratadas e projetamos as vagas em cima do total investido no ano de 2018, considerando os mesmos dados da tabela anterior.

[3] Matéria sobre o início da agonia disponível em: https://telaviva.com.br/29/03/2019/decisao-do-tcu-para-o-fundo-setorial-do-audiovisual/

[4] Para entender melhor o que ficou suspenso, vale a leitura: https://telaviva.com.br/17/03/2020/cancelada-sessao-do-congresso-que-analisaria-veto-presidencial-do-recine/

[5] Para entender melhor, vale a leitura: https://teletime.com.br/04/03/2020/pec-que-extingue-fundos-e-aprovada-na-ccj-e-segue-para-plenario-do-senado/

[6] Mais sobre o tema: https://www.meioemensagem.com.br/home/midia/2020/04/08/teles-conseguem-suspensao-de-pagamento-da-condecine.html

[7] Estimativa feita com base no relatório Valores totais de Investimento FSA, Recursos Incentivados, Editais, Programas e Prêmios – Em Reais (R$) – 2003 a 2018 e Listagem de Projetos Contratados FSA – 2008 a 1ª Semestre de 2019, da Agência Nacional do Cinema, disponível em: https://oca.ancine.gov.br/. Importante mencionar que os dados de 2019 só representam o 1º semestre. Foi enviado um email à Ancine em 08/04/2020 solicitando os dados consolidados de 2019 e a resposta obtida foi a seguinte: “A atualização do arquivo com todos os dados de 2019 ainda não está pronta para publicação”. Pode haver um aumento, mas não há como negar uma tendência de queda vertiginosa, em especial dos recursos do FSA, mas também dos recursos incentivados a partir da crise econômica e extinção dos mecanismos previsto na Lei do Audiovisual.

Leave a comment