Já raiou a diversidade

Uma colônia portuguesa no Marrocos transplantada para o Brasil no século XVIII. Essa é a história de Mazagão Velho, situada no sul do Amapá, estado mais setentrional do país. Seu povoado, fundado há quase 240 anos, tem como tradição a festa de São Tiago, uma representação da luta de cristãos e mouros que levaram os portugueses a sair da África e refundar a colônia no norte brasileiro. No meio da Amazônia. (1)

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Essa história extraordinária é a base do documentário “Mazagão, mito, memória e migração”, da produtora rondoniana Espaço Vídeo (2). Junto com 102 obras audiovisuais não menos fantásticas, a proposta foi selecionada para o PRODAV TVs Públicas, linha do Fundo Setorial do Audiovisual que vai disponibilizar para TVs comunitárias, universitárias, educativas e públicas mais de 260 horas de conteúdo de todas as regiões do Brasil. Foram 60 milhões de reais contratados em 2015 e há outros 60 milhões para um novo processo de seleção em curso.

Dados da Ancine mostram que em agosto de 2014 passava de 7 mil o número de agentes econômicos ligados à produção audiovisual independente. Quase 60% deles paulistas e cariocas. Só entre 2012 e 2014, 82,6% dos projetos aprovados via lei de renúncia fiscal ficaram circunscritos à ponte aérea. Dos 513 projetos inscritos no Fundo Setorial do Audiovisual no mesmo período, quase 80% também se concentram aí. E os dois estados juntos representam cerca de 30% da população brasileira.

O debate sobre a regionalização da programação na TV aberta tem mais de 30 anos. O modelo de redes verticalizadas e nacionais de televisão, com produção altamente concentrada internamente e compra de enlatados internacionais, não só confinou a produção independente brasileira a filmes autorais para salas de cinema, mas principalmente concentrou mercado, profissionais, conhecimento e recursos no eixo Rio-São Paulo.

Essa invisibilidade da história, dos sotaques, das tradições, das festas populares, da música, da culinária, da cultura, das infâncias, das fragrâncias, dos movimentos e das cores do Brasil tem muitas consequências, que vão do preconceito, passando pela ignorância até uma nociva pasteurização da diversidade.

Também por isso constam como princípios e objetivos da Lei 11.652/2008, que criou a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), o estímulo à produção regional e à produção independente. Com cotas para cada uma delas. Cotas confusas e baixas, mas ainda assim obrigatórias.

Em meio aos ataques sofridos pela TV Brasil permeados por uma disputa política em que todos perdem, há que se recuperar o debate sobre o desequilíbrio cultural regional que a comunicação pública deve remediar. Sem mencionar as demandas de representação da diversidade religiosa, de gênero, raça e etnia, além de informações que reflitam à pluralidade de opiniões e visões da sociedade. Tudo igualmente invisibilizado ao longo dos 70 anos de existência da televisão no Brasil.

Mas qual o papel da EBC no fomento à Rede Nacional de Comunicação Pública, que conta hoje com quase 200 emissoras associadas e parceiras (incluídas universitárias e comunitárias) em todo Brasil? E mesmo na articulação das redes públicas internacionais da região? De que forma isso é priorizado, fortalecido, realizado?

Num mesmo aspecto, como ampliar a integração das políticas de fomento e de difusão do audiovisual numa perspectiva bem mais distributiva? Como articular o papel da produção independente e da comunicação pública no caminho de ter informação, entretenimento e inspiração  – pautados pela diversidade cultural e pluralidade de visões – acessível a toda população brasileira? Há políticas embrionárias nesse sentido, mas o déficit de visibilidade de nós mesmos, da nossa história e da nossa cultura ainda é abismal.

(1) Mais informações sobre a história de Mazagão Velho: http://www.setemalas.com.br/mazagao-velho-onde-o-marrocos-encontrou-a-floresta-amazonica/
(2) Fonte: http://www.brde.com.br/wp-content/uploads/2016/02/TVs-PUBLICAS_resultado-final_PRODAV-082014.pdf

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